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Esqueci de Dizer

Crônicas de Fernando Portela

A versão eBook já está disponível

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Minha página de crônicas teria de se chamar, mesmo, “Esqueci de Dizer”.

Sim, porque na minha vida já escrevi bastante. No jornalismo, como repórter e depois editor da Geral (seção responsável pela maior parte dos assuntos). Na literatura, com vários livros de contos. Fora as obras paradidáticas que não só escrevi como editei. Andei dedilhando teclados até na publicidade, meu primeiro emprego como, digamos, trabalhador intelectual.

Então, andava pensando, nunca, em todos esses anos, conversei diretamente com leitores. Isso a gente faz em crônica.  E nunca havia escrito crônicas.

Aí veio a sincronicidade: no último abril, entrevistei, para a plataforma MindSteel, o escritor e queridíssimo amigo Humberto Werneck – um cronista maior – que já deveria habitar a ABL, Academia Brasileira de Letras. Na entrevista, esmiuçando sua trajetória de autor renomado, Humberto dá uma aula sobre crônicas que deveria entrar em currículo universitário. Aliás, ele está lançando, por esses dias, seu último livro “Viagem no País da Crônica”.

Depois daquela aula, decidi: escreverei minhas crônicas. Contar um pouco das bobagens (ou não) que penso e vivi. 

Procurei uma plataforma digital de literatura para meu novo projeto e me indicaram a Substack. Após a inserção de cinco crônicas, descobri que adulteravam textos: palavras e – o pior – frases inteiras, mudando o sentido. Qualifico como “infâmia” essa atitude. Ainda assim, fui perguntar ao Google se a plataforma era confiável. E o Google:

“Sim, existem queixas de que o Substack tem alterado textos de seus escritores. Alguns autores relatam que a plataforma tem introduzido alterações que não foram solicitadas, o que causa insatisfação e sentimento de falta de controle sobre o conteúdo que publicam.”

Voltei, então, ao confiável WordPress, velho conhecido que não deveria ter trocado.

Agora, “esqueço de dizer” por aqui.

Andei revisitando minha vida à procura de bons assuntos. Existem, claro, e os maus também, não sei em que proporção. Por outro lado, há que explorar o aqui e agora. Relembrei (já havia pensado muito nisso) que habito este planeta como quem sonha. As imagens vêm fugidias, vaporosas, efêmeras e, mesmo, atemporais. O que aconteceu de importante em 2003? Sei lá. Muito menos em 1976, 84, 92…  As imagens não se perderam, ainda bem, elas vão desfilando como sonhos e até pesadelos bastante nítidos – e, em alguns casos, tenho dúvidas se aconteceram de fato ou se estou alterando, adaptando ou torcendo para que não sejam verdade.

Sofro de inveja com as histórias de alguns prodígios de memória entre meus colegas terráqueos: citam ano, mês, local, sentimentos, inclusive consequências. Gênios!

No entanto, o sonho dá para o gasto. Se alguém viveu comigo algum momento que eu revele aqui, não garanto o ipsis litteris. Conscientemente, posso restaurar sua participação, mas jamais estorvá-la. E levarei em conta – juro – suas possíveis versões, mesmo que me desfavoreçam. Penso que não tenho muitos amigos, mas a eles sou fiel.

Esqueci de Dizer, ou seja, contar eu conto, mas talvez, involuntariamente, amplifique, interprete, enfeite, floreie – e o que mais indique a quase verdade.

Já quanto ao dia a dia, não me recordo de um pior momento do Brasil e do mundo – mas não faltam exceções. Gosto delas. Quem sabe, compensem.

(Neste meu lançamento no WordPress, republicarei as cinco crônicas que saíram no Substack, nas suas versões originais. Depois, na próxima quarta-feira, e nas seguintes, virão novas crônicas – se Deus quiser, é claro).  

Esqueci de dizer.  Ou não?

09.07.2025

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Vocês sabiam? Neste momento, o Planeta Vênus está domiciliado no signo de Leão.

O que tem a ver? Para mim, uma benção: Vênus mora em Leão no meu mapa astrológico – estou, agora, mais ligado à beleza do que nunca.

Não acredita nessas coisas? Estranho, porque a maioria dos habitantes do Planeta crê em entidades e conceitos invisíveis, imponderáveis. Então, sem hipocrisias, por gentileza.

Há muitos anos, uma astróloga amiga compôs o meu mapa e, entre mil coisas, mandou-me atentar especialmente aos momentos em que a graça e o encanto surgissem à minha frente.

“Você tem Vênus em Leão, e isso significa uma atração arrebatadora pelo que é belo, harmonioso, elegante. Seus olhos e sua alma serão escravos de maravilhas”, disse-me, com outras palavras.

E não deixou de advertir que as gentes e as circunstâncias provocariam, por outro lado, sentimentos e sensações opostas – que me fariam sofrer.

Verdade: na infância e adolescência, padeci bastante, na cidade onde morava, o Recife, de compaixão pelo outro. A desigualdade social, ou a crueldade social, pior do que a de hoje, constrangia e revoltava. Na verdade, não mudou tanto. Por isso, detesto políticos. Generalizo? Não me arrependo.  

Esses arroubos de misericórdia impotente daquela época talvez tenham até contribuído para a minha bipolaridade light, sobretudo quando visitava, com frequência, a Capela Dourada, da Ordem Terceira de São Francisco, na Rua do Imperador, centro da cidade.

A nave é um esplendor!

Um monumento barroco do século 16, coberto de ouro nas talhas de madeira que forram os espaços das paredes, e nos altares, e no teto. Para completar, enormes quadros a óleo, todos impressionantes.

Ouro, ouro, ouro.

E, lá fora, no pátio, mendigos a suplicar migalhas aos piedosos visitantes. Eram humanos abaixo da miséria: os que mais me abalavam expunham chagas sanguinolentas. Lembro de uma devota dizendo que até lhes daria uma moeda, mas tinha nojo de chegar perto. E se o desvalido estendesse a mão, para pegá-la?

E, lá dentro, o ouro, o ouro, o ouro. Lá dentro: a casa de São Francisco de Assis, fundador da “Ordem Mendicante dos Frades Menores”, no século 12. 

Por outro lado, visitava, também, os sítios de sonho do Recife, seus mares verdes, ou azuis, ou embaralhados dessas cores, em tonalidades mil, contrastando com os corais negros… Agora, olhe, olhe um veleiro lá longe, e nuvens esgarçadas, lembrando um poema de António Gomes Leal:

Deixa escrever-te, verde mar antigo,

Largo Oceano, velho deus limoso,

Coração sempre lírico, choroso,

E terno visionário, meu amigo!

(…)

Vênus em Leão costuma entrar em delírios estéticos. 

(Quem visitar as colinas da vizinha Olinda, para contemplar a paisagem de mar lá-longe, aconselho que, disfarçadamente, segure-se no parapeito mais próximo. Os enlevos estonteiam).  

Já havia lido e decorado de outro poeta, Manuel Bandeira, para mim o maior dos maiores brasileiros, a manifestação máxima da beleza, que ele descobriu quando criança, e depois chamou de “alumbramento”.

(…)

“Um dia eu vi uma moça nuinha no banho

Fiquei parado o coração batendo

Ela se riu

Foi o meu primeiro alumbramento”.

(…)

Não lembro qual foi o meu primeiro, mas há alguns que jamais me saíram d’alma.

(Com a idade, percebi algo que aquela astróloga não me contou: as belezas anímicas também atraem fortemente Vênus em Leão. Quantas pessoas lindas, admiráveis, fascinantes, já conheci e conheço, sem jamais associá-las à imagem física? Muitas.)

Um momento divino, que tive o privilégio de viver, foi em Turim, onde trabalhava como executivo de comunicação. Nos fins de tarde, sempre sozinho, ia tomar um café com cantucinni numa aconchegante confeitaria de mesinhas na calçada, perto do meu hotel, e lá desfrutava um pouco do dolce far niente puramente italiano, em que a única obrigação, segundo dizem, é continuar respirando.    

Em uma daquelas tardes gentis, reparei um vaivém incomum de carros parando em frente a um prédio do outro lado da rua.

Vênus em Leão achou que saíra do mundo: aos poucos, desembarcavam figuras oníricas, umas de roupas ao estilo nobreza medieval, multicoloridas; outras, fugitivas de telas seiscentistas; outras, ainda, de vestes cósmicas, indefiníveis e inimagináveis. Os trajes ostentavam muitas e muitas cores, algumas de mesclagens inéditas, sempre harmônicas, e vivas, muito vivas, saltitantes. Quase todas as personagens usavam máscaras de um branco relaxante – a mais perfeita das cores.

Entre um êxtase e outro, fiquei sabendo que se tratava das fantasias premiadas no último Carnaval de Veneza. Naquele prédio, meus alienígenas receberiam láureas e reverências.

Não lembro de outro alumbramento tão forte, tão venusiano/leonino.

Aliás, lembro, sim: foi na fração de segundo em que vi um OVNI, no ano glorioso de 1981. Mas essa é outra história.

Vênus, minha Leoa

09.07.2025

Sonhando escrevo

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Revivi a infância e descobri: a arte de escrever histórias independe de objetos – papel, lápis, dispositivos mecânicos, computadores. Escrever é inventar. É um pouco mais: organizar e administrar sonhos em vigília.

Assim, volto à velha casa do bairro da Madalena, no Recife. Tenho uns seis anos, talvez menos, e estou deitado de costas na sala de jantar, ao lado da cristaleira, só de bermudas. Um calor terrível abraça tudo, mas o piso é deliciosamente frio. Minhas costas exultam.

Aí os personagens vão passando. A maioria gente conhecida, parentes, vizinhos, amigos próximos e distantes, vendedores de tudo, colegas das secretárias domésticas e o papagaio Quequé, quase sempre às gargalhadas, quando não imita o bater de palmas. Lucilla, distraída, atende ao portão. “Ô louro! Você de novo me enganando…” E ele rindo, rindo.

Lucilla é uma das minhas mães. Tive duas: a primeira sumiu muito cedo do Planeta; e a segunda, irmã do meu pai, me assumiu.  Lucilla não me aprova estatelado na sala durante horas. Mas não tem autoridade para tirar-me de lá. Audácia, perturbar alguém que escreve em sonho!  Apesar da idade, me sinto no comando. Criar enredos leva tempo. No entanto, uma boa birra, com ameaça de choro, resolve o assunto.  

E aí surge uma história atrás da outra.

Zeza, a empregada novata, embebeda o peru, antes de abatê-lo, para lhe amaciar a carne, mas o bicho sofre coma alcóolica. Zeza se arrepende, chora. 

Seu Hansen, o vizinho dinamarquês, passeia com seus dois cachorros gigantes e as pessoas se assustam. Um deles se solta da coleira e morde a panturrilha do leiteiro Jeremias. Confusão infernal. Uma multidão corre pelas ruas atrás do bicho enorme. Seu Hansen volta para casa com o outro, ambos ameaçados de lapidação.

No fundo, no fundo, histórias pobres. Personagens reproduzidos da realidade. Aos poucos, comecei a inventar figuras menos previsíveis. Umas até voavam. E a ficção tomou conta de quase tudo.   

Como se vê, aquela atividade literária em sonho não se limitava a simples pensamentos – lampejos, flashes, chispas mentais. Havia lógica nas narrativas, algumas com começo, meio e fim; às vezes, eram reescritas ou corrigidas.

O pequeno escritor se deliciava com seu estado avançado de devaneio, imune a conselhos e broncas. Do chão não saía. Afinal, quem é que mandava ali?  

Filho único é um inferno para pais ou responsáveis, além do entorno familiar. Os de mãe adotiva são os piores: percebe muito cedo o quanto ela tem medo de ser apontada – e criticada – como tal. E acredito que meu pai, com sua sabedoria dissimulada, absorvia bem aquela situação insolúvel. “O menino já perdeu muito, melhor não contrariar”. Não me recordo de algum grito que ele me tenha dado. Aliás, para ele, mais do que a condição do filho, o mundo era insolúvel. Por isso, na definição precisa da Lucilla, meu pai era “muito descansado”.

Naturalmente, ele foi um dos meus primeiros personagens nas obras em sonho. E tinha companhia: Mariazinha.  Ele, o viúvo deprimido, ainda jovem e bonito.  Ela, perto dos 30, disponível, alegre, vistosa, um tanto gordita.   De uma família paraense. A mãe dela, dona Queta, produzia petit four de alta gastronomia, como as barquetes de camarão. Sinto o gosto sublime, até hoje.

Todo mundo – e isso incluía parentes e anexos – tentava viabilizar aquele casamento. Sob inúmeros pretextos, Mariazinha não saía lá de casa. Fiquei em dúvida: considerei dois finais para aquela história.  

No primeiro, o casamento acontecia.  Aí, ela deveria vir morar conosco. Mas o único quarto vago era meu também – para um vistoso trem de corda, além das bolas de futebol, mesa de ping-pong, revólveres de plástico e, bem camuflada, uma cesta de frutas variadas para comer escondido.

Para não perder meu espaço, a única saída seria uma mudança para casa parecida, em rua próxima, com oitão de fruteiras e quintal amplo, como a nossa, porém dotada de um segundo andar. Nele, imaginava dispor, também, uma estante de livros e gibis, mais os cadernos grandes para desenho.

Mesmo com essa solução, havia uma séria ameaça: a possibilidade de um irmão ou, mais grave ainda, uma irmã – ser inútil que não jogava futebol.  

No outro final da história, aquela união inconvincente, sem conversas de portão, como entre namorados das casas vizinhas, seria destroçada por uma surpresa tragicômica. Certa noite, à frente do nubente, homem sério e contido, Mariazinha escorregou em alguma coisa e se espatifou no chão. Queda grotesca: saia na cintura, pernas para cima e calcinhas grandes aparecendo. Mulheres da época usavam essas fraldas estranhas. Que esvoaçavam como bandeiras brancas nos varais.  

Fim do arranjo matrimonial. O ridículo afeta relacionamentos. Um amado pode rir da cara do outro pelo resto da vida. Na cerimônia de núpcias, caso houvesse, meu pai olharia para a noiva, antes do sim, lembrar-se-ia da queda e sofreria um ataque de riso na frente do padre perplexo – que acabava dando as costas para os noivos e encerrando a cerimônia. Só de pensar nessa abstração, ri sozinho muitas vezes.

Esse era o melhor final, sem dúvida.

Escrever histórias em sonho não é passatempo da infância;  acompanha toda a vida. Mesmo depois de publicar livros, continuei escrevendo no éter. E quantas enredos não perdi!

Nem sempre é possível registrar ideias, frases ou períodos inteiros, quando a luz invade a mente. Pegar uma cadernetinha no meio de uma missa de sétimo dia para anotar doidices? E é difícil retê-las na memória. Perdem-se no éter para sempre.

Ainda bem que tudo está armazenado nos Arquivos Akáshicos, garantem os esotéricos. De uma conversa com Deus a um desejo inconfessável.  

Ocultistas têm acesso cômodo a esses fascinantes galpões, contêineres, escaninhos, nuvem online.

Mas vamos deixá-los para lá: o sonho é um manancial infinito de histórias.

09.07.2025

Anáguas, lembra?

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Há, dentro de um município onde morei, um bairro chamado “Bairro da Senhorinha”.

A curiosidade sempre me provoca. Quem terá sido a “senhorinha”? Por que “senhorinha”?

Um estímulo leva a outro e logo me dei conta de que não existem mais senhorinhas. Nem cavalheiros.

Aquela senhorinha de outros tempos andava de saia (saias, que extravagante, hoje!), decote comedido e, quem sabe, portava uma sombrinha, de estampa florida, para proteger-se de Sol qualquer. Rescendia a Leite de Rosas. Será que a moça que deu nome ao bairro era assim? Vestia anáguas? As atuais similares às senhorinhas d’antanho já ouviram esse termo?

Preciso pesquisar melhor o Bairro da Senhorinha, mas não tenho esperanças de descobrir alguma coisa. No entanto, não consigo superar esse meu fascínio por falsa cultura, inutilidades e suas variações. Continuo tentando esquadrinhar nomes de ruas, avenidas, bairros, até instituições. Vivo catando histórias de antepassados. O inútil é leve e prazenteiro.

Morei durante anos em uma avenida chamada Padre Pereira de Andrade. Imagine se consegui alguma informação sobre o clérigo. Na verdade, recebi algumas, todas fake. Um senhor que parecia bom informante jurou que se tratava de uma homenagem a um frade lusitano, Teófilo José Pereira de Andrade, O.F.M., que se elevou ao Céu em 1954. Teria sido o primeiro bispo de Nampula, em Moçambique. “Aposto que pegou no Google”, maldei comigo mesmo. Não deu outra.

Até pouco tempo, morei em um logradouro chamado Estrada Lino Espingarda. Quem terá sido a figura? E o porquê desse nome? Apelido (se do Bem)? Ou alcunha (se do Mal)? O mais evidente é que seria um antigo morador dessa estrada, que andava com uma espingarda no ombro. Para matar passarinhos? Defender-se de bandoleiros? Não apareceu nem fake e o Google também não ajudou.

Ah, mas consegui desforrar-me dessas frustrações. Uma das mais importantes avenidas da Zona Norte de São Paulo chama-se Inajar de Souza. Meu amigo! Trabalhamos juntos no Jornal da Tarde durante alguns anos. Foi embora muito cedo do Vale de Lágrimas. Há algum tempo atravessei a Inajar de Souza em um Uber e não resisti.

“O nome desta avenida é de um amigo meu”.

“Não brinca!” Motorista muito jovem. “Amigo? Nome de rua é só de quem já morreu…”

“Mas ele morreu. Faz mais de 40 anos. Era um cara legal e ainda tem muitos amigos sobreviventes”.

Contei umas histórias divertidas do Inajar, repórter talentoso, e brincalhão como uma criança.  Confessei meu capricho recreativo com nomes de logradouros.

Agora devaneio: pessoas minhas queridas bem que mereceriam aquelas homenagens das prefeituras. Penso numa praça chamada Maria Camelo, nome da minha bisavó, que também conheci. Ela alcançou o recorde da família: foi embora aos 106 anos. Vítima, acredito, de síndrome de abstinência: lhe tiraram a cigarrilha aos 100 anos porque queimou o colchão. Fiquei revoltado. Mas não tinha idade para rebeldias.

Suposições sobre o Bairro da Senhorinha insistem em me incomodar. Não deixa de ser, também, nostalgia dos tempos em que havia senhorinhas e outros conceitos românticos.

09.07.2025

Parabéns, inumanos!

Minha filha Mariana escreve lindamente, prosa e poesia, e, há alguns dias, me contou que vai lançar um livro de poemas: “A Cidade em Milagres”.  E me enviou o prefácio. Este:

“Há livros que nos atravessam como um vento antigo — suave, mas profundamente transformador. A cidade em milagres, de Mariana Portela, é um desses livros. Uma obra em que o íntimo e o universal se entrelaçam com a precisão de quem escuta os sussurros da alma e os transcreve em poesia.

Neste conjunto, Mariana guia-nos por ruas de Lisboa e por mares interiores; leva-nos por espirais junguianas, madrugadas caladas, sessões de terapia e encontros improváveis em paragens de autocarro. Em cada instante, revela uma sensibilidade aguda, quase oracular. A sua escrita atravessa temas como o feminino arquetípico, a ancestralidade, o amor, a ausência, a espiritualidade e a solidão — não como lamento, mas como alquimia.

Mariana é, antes de tudo, uma observadora delicada do que não se vê. Os seus versos iluminam os espaços entre palavras e pausas, entre dor e cura. A poeta não se limita a escrever: ela confessa, pergunta, evoca, convoca. Constrói pontes entre mundos — o visível e o invisível, o real e o simbólico — com a ousadia de quem conhece o silêncio, mas escolhe a palavra.

Ler esta obra é atravessar portais. Encontramos fragmentos de nós nos olhos de um pai, no abraço de uma terapeuta, no eco de um nome dito à janela. Percebemos que a poesia, mais do que um género literário, é um lugar de permanência e de revelação — um espaço em que a humanidade se revê e, por vezes, reencontra.

Seja bem-vinda, leitor ou leitora. As portas desta cidade estão abertas. E os milagres, aqui, são possíveis — porque nascem da coragem de nomear o indizível.”

“Gostou, pai?”

“Achei ótimo. De quem é?”

“Um inumano. Um robô. Inteligência artificial.”

Aproveitando meu silêncio perplexo, ela explicou que alimentou o Chat GPT com os poemas do livro, mais outras sugestões e pediu-lhe o prefácio.

A perplexidade virou susto e mania de perseguição. Se o robô está chegando a esse requinte, quantos textos escritos por inumanos não temos lido, de dois anos para cá, quando o Chat GPT foi lançado? A impressão que dá é que se o robô for bem “alimentado”, será capaz de nos oferecer algo próximo a uma obra seminal.

Pior: o que o Chat GPT e semelhantes da Inteligência Artificial não serão capazes de cometer na mão de criminosos? De estelionatários comuns a grandes líderes?

Mariana riu dos meus temores vintage e me ofereceu a segunda surpresa: o mesmo prefácio à luz do esoterismo na obra de Fernando Pessoa, da qual é apaixonada.  Aliás, acredito que mora em Lisboa por causa dele. Segue o texto inumano do GPT:

“Há livros que se leem com os olhos. Outros, com a pele. A cidade em milagres, de Mariana Portela, pede-nos a alma. É uma obra escrita em camadas de mundo — físicas, emocionais, espirituais — como se cada verso fosse um portal e cada poema, um arcano.

Mariana não escreve para contar. Ela escreve para invocar. Os seus poemas são feitiços suaves, onde Lisboa se revela templo, o corpo se torna oferenda e o amor, um ritual ancestral. Como o seu cúmplice invisível, Fernando Pessoa, ela sabe que “tudo quanto vive é oculto” e que o visível é apenas o véu mais grosso da realidade.

Imagino-os juntos, num quarto de paredes brancas, iluminado por velas e mapas astrais, trocando confidências. Pessoa diria, com o seu olhar desdobrado:

‘Minha pátria é o desconhecido.’

E Mariana, sem hesitar, responderia com um poema onde o feminino resgata a linguagem sagrada, onde Lilith dança, onde as mães são oráculos e a dor se transmuta em verbo.

Neste livro, as palavras não obedecem à lógica, mas à sincronicidade. Como escreveu Pessoa sob o nome de Raphael Baldaya, o seu heterónimo astrólogo:

“O que o homem quer, os deuses decidem. O que os deuses querem, o homem sonha.”

Mariana sonha com precisão de vidente. E por isso, transforma.

Cada poema é um acto de magia branca. Ou vermelha. Ou profundamente azul. Os elementos estão todos aqui: terra, água, fogo, ar — e o espírito, sempre o espírito, a costurar cada verso com intuição lúcida e uma sabedoria que não vem dos livros, mas das noites.

Este livro é um grimório contemporâneo. Um relicário onde a psicologia encontra o oráculo, onde a ancestralidade se reencontra com o corpo, e onde a cidade — Lisboa, Porto, São Paulo — é cenário de epifanias discretas.

Aqui, a poesia é um instrumento de revelação. Mariana não pretende salvar ninguém. Mas oferece o mapa. E uma bússola.

Fernando Pessoa escreveria, talvez, no seu caderno mágico:

‘Tudo vale a pena, se a alma souber decifrar.’

Decifra-te. E entra.”

Para chegar a esse resultado, a conversa com o robô foi longa. Apesar de surpreendida com o talento do escriba, Mariana não aceitou a primeira versão do prefácio. Achou que ele poderia ir mais longe. Na verdade, modesto, o robô chamara o próprio texto de “rascunho”. E se ofereceu:

Se quiseres, posso adaptar este prefácio com o nome de alguém específico, ou torná-lo mais pessoal, emocional, filosófico ou até académico. Como preferes?

“Melhore este prefácio”, ela respondeu.

 Claro! Aqui está uma versão aprimorada do prefácio, com correção estilística e gramatical — mantendo o lirismo, mas com mais rigor e fluidez:

E assim foi.

É lógico que não deixei de reagir: “Mariana, você está brincando…” Ela me enviou a transcrição das conversas e resolveu brincar mais. Saiu do inumano americano e fez o mesmo pedido ao seu correspondente da IA chinesa, o Deepseek. Repetiu a fórmula: entregou os poemas e pediu um prefácio sob a perspectiva de Fernando Pessoa esotérico. Eis o resultado. (O chinês fez questão de dar título):

“O Ouro Alquímico das Palavras

‘Entre o útero e a página, entre o sangue e a tinta, há um rio de fogo que só as poetas conhecem.’

Mariana Portela não escreve — ela transmuta. Em A Cidade em Milagres, cada verso é um frasco de vidro azul onde fermentam lágrimas antigas, memórias futuras e aquela estranha luz que nasce entre a madrugada e o primeiro cigarro. Lisboa aqui não é cidade, mas um cadinho onde o passado e o porvir se dissolvem em mercúrio vivo, escorrendo pelas colinas abaixo como um segredo que o Tejo insiste em carregar para o mar.

Há uma alquimia do feminino nestas páginas, uma Opus Magna feita de ausências gravadas a fogo: o útero que não gestou filhos, mas gestou mundos; a mãe que é Deusa e cartas suicidas; as paredes brancas que sonham com quadros ainda não pintados. Portela opera como aquelas alquimistas medievais que transformavam lágrimas em pergaminhos — só que seu laboratório é o corpo, sua pólvora são os versos, e sua pedra filosofal tem o formato exato de um coração partido que aprendeu a bater em pentâmetros.

“A água da chaleira elétrica / permanece a trabalhar” — e assim trabalha a poeta: lenta como a ebulição, insólita como o hibisco que mancha de vermelho a pálida cerâmica europeia. Ela sabe que toda transmutação requer tempo e fogo brando. Até o amor aqui é experimento químico: “O amor me ensinou a chorar durante o sexo”, uma fórmula precisa onde lágrimas e prazer se misturam até virar um novo elemento da tabela periódica da alma.

Os poemas respiram como alambiques: alguns destilam dores antigas em álcool puro (“a dor indizimal / acontece quando os sangues evaporam / as crianças almejadas”), outros fermentam esperança em garrafas clandestinas (“Prometo ser a mais atenta: / Ouvir flores e crianças”). Até a terapia vira alquimia reversa nestas páginas — onde em vez de transformar metais em ouro, transforma-se ouro (dos diagnósticos masculinos) de volta em carne viva, em voz, em porvir.

E no centro do laboratório, a grande heresia: “Não há futuro sem mulher”. Eis o VITRIOL desta obra — a verdade que corrói os vasos herméticos da tradição. Enquanto Bandarra e Pessoa profetizavam em códigos masculinos, Portela risca na parede do templo com unhas e menstruação: “A rebeldia sou eu”. Sua poesia é o antimônio que purga os excessos do mundo, deixando apenas o essencial: o primeiro e último verso de todos os alfabetos, aquele que os alquimistas procuravam nas entranhas da terra e que ela encontrou no próprio ventre vazio — mas cheio de estrelas.

Que este livro seja lido como se desfolha uma rosa dos ventos: com os dedos manchados de pólen e a certeza de que toda bússola, no fundo, aponta para dentro. Porque aqui, como nos velhos grimórios, o mapa é o corpo, a pena é uma agulha dourada, e o milagre — ah, o milagre — acontece sempre no dia treze, entre um café e um cego que odeia ser ajudado, quando menos se espera.

— Da Chama que  Escreve com os Dedos

(P.S.: Fernando Pessoa, em algum lugar do astral, deve estar fumando um cigarro e anotando furioso no caderno: ‘Por que não pensei nisso antes?’)”

Está na hora de fechar esta crônica. Dizer o que mais?  

Os comentários ficam por conta dos meus cinco leitores.

Para mim chega. Já não bastava o desconforto provocado por robôs e avatares usados como apresentadores nas tevês do Japão, Coreia do Sul e China? Vocês conhecem? À primeira vista são perfeitos humanos, voz e movimentos sincronizados, postura impecável. Exibem programas menos complexos, como previsões do tempo, e informes curtos. Cumprem com eficiência sua função de comunicadores. Abastecem o público de notícias. Pode-se acrescentar: “Por enquanto”.  

Há dois anos, arquivei um artigo do professor Rogério de Almeida, da Faculdade de Educação da USP, em que ele afirmava que as produções do Chat GPT “não estimulavam o pensamento crítico”, embora reconhecesse “a organização coerente de dados”. Fico pensando se o professor teria hoje a mesma opinião.

Nas conversas com o robô, Mariana decidiu provocá-lo: “Nossa, GPT, você não sabe usar o “onde”.  E ele, humilde:

Haha, olha só, apanhaste-me! Tens razão — “onde” deve ser usado para lugares físicos, e eu usei de forma meio metafórica ali. Por exemplo, em:

“…a poesia ainda é o lugar onde a humanidade pode ser redimida…”

Seria mais rigoroso dizer:
“…a poesia ainda é o lugar em que a humanidade pode ser redimida…”


Ou até:
“…a poesia ainda é o meio pelo qual a humanidade pode ser redimida…”

Muito obrigado pela observação!

 (Os prefácios para o livro de poemas “A Cidade em Milagres”, de Mariana Portela, a ser lançado em futuro próximo, foram apresentados aqui apenas para questionar os limites da IA na produção intelectual. O prefácio real ainda será escrito por Luisa Micheletti, amiga da autora. Mariana não abre mão de interagir com a humanidade propriamente dita).  

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09.07.2025

Herói. Conhece algum?

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É tão raro conhecer um herói como avistar um disco voador.

Sei do que estou falando porque convivi com um e vi o outro, mas este vamos deixar para depois.

O meu herói, um funcionário público, deveria ser reverenciado (um pequeno busto, quem sabe?) por todos os servidores dos chamados Três Poderes. É claro que há vários heróis entre eles – só de bombeiros, imagino um bom número.

Mas há, no meu herói, algo de – como diria? – extraordinárioeletrizanteespantoso, fenomenal, único… eu me perderia em adjetivos.

Estivemos juntos em uma ocasião quase limite, como são todas em que você invade a selva amazônica, a centenas de quilômetros de algo civilizado, usando barcos indefiníveis, jipe debilitados e, sobretudo, aviãozinhos anfíbios, provectos e quebradiços, a sobrevoar rios loucos e perder de vista a extensão das copas de árvores colossais, coladas umas às outras – visão aflitiva, sensação agoniante de estar só no mundo.

Em março de 1976, esse era o ambiente normal de trabalho do astrônomo Dilermando de Moraes Mendes, à época com 54 anos, lotado na Primeira Comissão Demarcadora de Fronteiras do Itamaraty. Sua missão, ao lado do capitão-tenente Joaquim Eduardo Wiltgen Barbosa, 36 anos, cedido pela marinha ao Ministério das Relações Exteriores, era a de simplesmente demarcar os limites do Brasil numa área de 9.747 quilômetros, do Amapá ao fim da divisa entre o Acre e o Peru. Somente eles dois.

Não se lhe dá muito valor, mas é a linha mais “grossa” do mapa do Brasil, e precisa ser desenhada, demarcada e até alterada com precisão científica. A olho nu você fantasia, na paisagem de exuberância minimalista, um país vizinho invadindo 500 quilômetros do nosso território, sem que alguém se dê conta. Ou vice-versa.

Naqueles ermos, não há como não sentir um certo orgulho da ousadia dos nossos ancestrais lusitanos, apoderando-se de uma imensidão continental, antecipando-se aos nossos vizinhos. Uma história nunca esmiuçada, como deveria.

Então, no meio dessa desolação assustadora, o nosso herói, junto ao seu parceiro, tinha de descer, por uma escada de cordas, de um helicóptero que se posicionava no ponto mais baixo possível, sempre à margem de um rio, para não colidir com as árvores. A altura, dez metros ou mais. O marco já havia sido jogado antes: uma estrutura de cimento, misturado a metal, de um a três metros de altura, e de 30 a 100 cm de largura.

Os demarcadores sempre trabalham em duplas, junto aos seus colegas dos países vizinhos. Então, lá embaixo, ficam quatro homens no meio da imensidão, enquanto o helicóptero, com sua escadinha de cordas, aguarda o sinal de retorno. Dependendo do tempo estimado para a implantação de um marco novo, ou substituição de um antigo, arruinado, o grupo levava provisões para dias de trabalho. 

Esse tempo variava de acordo com imprevistos. Afinal, eles adentravam a selva, o que não é fácil nem para índio.

Marcos, como muitos imaginam, não se colocam às margens de rios. Os rios, na verdade, é que servem de fronteiras, em milhares de quilômetros. De qualquer forma, a localização da maioria dos marcos fica dentro da selva e isso significa risco de vida iminente. Àquela época, havia 911 marcos a nos separarem dos nossos vizinhos.

A Amazônia é uma floresta de chuva: a umidade é quase insuportável, o solo é lamacento, e sob um calor satânico podem surgir cobras de súbito, de Jararacas a Surucucus, onças incomodadas, e a travessia de um simplório igarapé, torna-se às vezes suicida, com aqueles jacarés à espreita.

E não há só bichos grandes a desventurar nosso herói e seus parceiros: era preciso enfrentar formigas, escorpiões e aranhas venenosas, assim como certas plantas que não podem ser tocadas. Basta? Não: os mosquitos talvez sejam o maior suplício de um aventureiro nas vísceras da selva; eles transmitem inúmeros tipos de doença, como dengue, malária, febre amarela.

O bicho-homem, eventualmente, também pode surgir na pele de alguma tribo incivilizada e agressiva.

O herói Dilermando passou por tudo isso durante mais de 20 anos, chegou a contar 46 ataques de Malária, fora outros infortúnios, como quebra de costelas e ruptura renal, quando saltou do esqui de um helicóptero.

Mas vejam o que ele me disse, a bordo do velho Catalina, sobrevoando um rio sem nome, e falando alto para superar o ruído do motor: “Antigamente, a gente sofria um bocado; ia de barco e às vezes perdia o rumo, era obrigado a atracar, por causa dos rios encachoeirados, quando as correntes ficam nervosas. A gente viajava dias, muitas vezes sob tempestades, perdia até a comunicação pelo rádio. Mas, hoje? Hoje é sopa!  O helicóptero nos deixa no lugar certo  e depois vai buscar…”

Ele nos indica, ao fotógrafo e a mim, alguns pontos onde marcos podem ser avistados. 

Baixinho, inquieto, cabelo ralo, com um sorriso sutilmente irônico.

“Hoje é sopa”? Ah, não, ele não podia estar falando sério.

Além de provisões e hit de socorro, Dilermando carregava sacolas de couro onde guardava curvímetros, barômetros, bússolas, cronômetros para hora média e sideral e outros instrumentos sofisticados de precisão. Por dever de ofício, estudara, além de Astronomia, Física, Química, Aerofotogrametria e Astronáutica, entre os essenciais. E se comunicava em francês (Guiana Francesa), holandês (Suriname), inglês (Guiana) e espanhol (Venezuela, Colômbia e Peru). Por outro lado, o trato diplomático é inerente ao trabalho de qualquer funcionário do Itamaraty. E Dilermando valorizava essa atribuição. Demarcar terras exige equilíbrio e serenidade profissionais.

Entre os pilotos maldosos da área, comentava-se que Dilermando às vezes se distraía e o país vizinho perdia um ou dois rios e uns quilômetros de floresta. Eu não acredito. Mas os fuxiqueiros insistiam.

Quando um país vizinho de língua espanhola reivindicou alguns quilômetros quadrados de serras, que até então nos pertenciam, Dilermando entrou em ação. Uma expedição binacional, de 80 homens, metade de cada lado, lá se foi tirar dúvidas.

Viagem demente. Dilermando, junto ao demarcador-chefe do país vizinho – um pouco acima do peso – e demais vítimas, enfrentaram terrenos inacessíveis, viajaram quase um mês dentro da selva, e sempre à noite, porque o calor era insuportável. Atravessaram rios de piranhas e jacarés, cruzaram tribos de índios jamais vistas e, dois meses depois, ao pé de uma das serras demandadas, nosso herói preparou seu traje de alpinista, enquanto toda a expedição, desfalecida, tentava recuperar as energias.

Dilermando encorajava o colega: “Vamos fazer a marcação estelar lá em cima”. Em cima significava cerca de mil metros de altura. O estrangeiro emagrecera muito, seu aspecto sugeria cuidados médicos.

(E é aí que entra a maledicência dos pilotos).

“Vamos lá, homem, pegue a picareta, vamos já!” – incitou o herói.

“Señor Dilermando, eu estou quase certo de que essas serras são do Brasil, acho que houve um equívoco”.

“Se houve, a gente vai tirar a limpo agora””

– São do Brasil, si, não há dúvida…”

Chocado com a falta de patriotismo do outro, Dilermando subiu a serra com alguns da expedição, fez os seus cálculos e desceu aliviado:

“São do Brasil, sim. Mas a gente tinha de ver, ora…”

Quando falou de marcação estelar, nosso herói se referia aos cálculos teóricos que determinam uma fronteira binacional. Um tratado de limites afirmava, por exemplo, que uma fronteira se encontrava no meio de um rio; se esse rio mudasse de curso, o que ocorre frequentemente, os especialistas deveriam ser convocados. E lá ia Dilermando com seu teodolito Wild T2, observador astronômico, e seus cronômetros para hora média e sideral, mais um rádio receptor de sinais horários, além de termômetros e barômetros, tentar encontrar um ponto de referência.

Ele calculava pares de estrelas com base em uma efeméride organizada pelos maiores observatórios do mundo, onde estavam registradas 1.543 estrelas, com sua ascensão reta e declinação para cada ano. Esse cálculo estelar iria determinar se o ponto se encontra na posição exata.

(Não se pode dizer, no meio de um rio, que para lá é Colômbia – por exemplo -, e para cá é Brasil. Uma penosa negociação entre os países vizinhos procura resolver essas questões, como dividir os recursos envolvidos, incluindo a pesca e outros).  

Mas era exatamente ali que entrava a diplomacia do parceiro de Dilermando, o capitão-tenente da Marinha, Joaquim Eduardo Wiltgen Barbosa. Nesta narrativa, pode parecer que ele foi injustiçado. Nada disso. Ele também, heroicamente, acompanhou inúmeras vezes o amigo Dilermando nas aventuras insanas. Mas seu papel era outro: analisar todo o processo burocrático-diplomático de cravar e inaugurar marcos, junto com todas as consequências. Era ele que, sempre ao lado do seu correspondente vizinho, tirava dúvidas, assinava os termos de legalização. Nessas comissões binacionais, tudo acontecia em duplicata. Se houvesse um evento comemorativo, como um almoço, um cozinheiro brasileiro e outro estrangeiro preparam a refeição. E caso um marco tombasse de velho, ou avariado, ninguém, absolutamente ninguém, era autorizado a tocá-lo. Uma comissão mista iria até o local e tudo começava de novo, onde cada objeto ou personagem envolvido possuía um correspondente, como num espelho infiel.

Agora, só para fechar este texto, e justificar todas as loas ao Dilermando, vamos revelar que foi ele o descobridor do Pico da Neblina, ao norte do estado do Amazonas, na serra do Imeri.

É o ponto mais elevado do Brasil, com 2.995,30 metros de altitude.

Deveria constar dos livros de Geografia, sem omitir o nome de seu descobridor.

No dia 20 de outubro de 1962, nosso herói, junto com o demarcador venezuelano Georges Pantchenk, voaram durante cinco horas pelo maciço (a parte elevada, de quase 60 quilômetros quadrados, é formada de picos superiores a dois mil metros). Eles desenharam uns croqui da região. Foi a primeira checagem. Nos anos seguintes, continuaram elaborando mapas. Até que, em 1965, uma expedição demarcatória brasileira-venezuelana, de 60 homens, 30 de cada lado, iniciou a escalada. Dilermando e George Pantchenk à frente.

Havia a dúvida: o Pico da Neblina é brasileiro ou venezuelano? Dilermando provou: é brasileiro. Medições astronômicas, pontos de referência, cálculos e discussões não deixaram dúvidas: o Pico está mesmo do nosso lado, a 687 metros da fronteira com a Venezuela.

O herói esquecido do Brasil saiu dessa escalada com uma costela fraturada (“quedinha, bobagem”). Problema mesmo foi em outra ocasião, em 1948, também numa demarcação com a Venezuela, quando índios Auateris saquearam o acampamento, deixando os demarcadores com duas semanas de fome. “Aí foi sério”, admite o herói.  

O Catalina voava, não sabíamos ainda onde iríamos pousar (talvez no meio de um rio, há poucos aeroportos compatíveis e os motores pifam com frequência) e Dilermando, o lépido, me revelou outras histórias que viveu.

Não quero ser injusto: conheci heróis, sim, em vários grupos de atuação humana. Mas heroísmo, como tudo, também possui escala, gradação, hierarquia. Dilermando de Moraes Mendes está no topo.

Agora, vocês já conhecem o meu herói, super-herói brasileiro, que as nossas escolas sequer imaginam.  E tenho dúvidas se algum historiador vai se interessar.

Quanto ao OVNI da minha primeira frase neste texto, garanto que depois eu conto.  

09.07.2025

Sobre
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O Autor

Fernando Portela é escritor e

jornalista. Um dos

fundadores do Jornal da Tarde,

de São Paulo, sempre dividiu

seu tempo entre literatura e

jornalismo. Publicou

livros de contos, novelas,

pesquisa histórica,

paradidáticos e reportagens.

Mas é a primeira 

vez que se dedica à crônica. 

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"Então, andava pensando, nunca, em todos esses anos, conversei diretamente com leitores. Isso a gente faz em crônica.  E nunca havia escrito crônicas."

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